Antônio Carlos entrou em ônibus e iniciou jornada até parar em Fortaleza, aos cinco anos. Viveu nas ruas e em abrigos da Capital. Com apoio das memórias e de amigos, reconstruiu caminho de casa e foi “encontrado” por um dos irmãos mais de 20 anos depois
Melquiades Junior/Diário do Nordeste
Imagens de Antônio Carlos hoje, aos 32
anos, e dele ainda menino, aos 14 anos, foram distribuídas no Cariri por
amigos. O objetivo era encontrar a família biológica - Foto: Divulgação
O motorista Antônio Carlos da Silva, morador de
Maranguape, descobriu aos 32 anos o paradeiro de sua família. Ele não os via
desde que tinha fugido aos cinco anos de idade, do Cariri, sem saber voltar.
Com apoio de amigos e das próprias lembranças de casa, ele reencontrou a
família e sua história quase três décadas depois.
Após perceber que só saberia responder “quem sou”
se soubesse “de onde vim”, Carlos fez um mergulho profundo em suas memórias e
feridas. Por muitos anos silenciou o tamanho da saudade que sentia da mãe e dos
irmãos. De casa. Mas que casa? Onde? Com cinco anos de idade, o menino correu
como quem foge, entrou num ônibus de um terminal de beira de estrada onde
costumava brincar e pedir dinheiro. Dormiu como quem descansa, e quando acordou
já estava longe. Quando deram conta dele, levaram para ainda mais distante:
Fortaleza. Se a memória não lhe falha, tudo ocorreu há 27 anos, mais ou menos,
tempo em que duraram perguntas só respondidas ontem, 24 de novembro de 2020.
A criança desaparecida, o garoto perdido, cresceu
por Fortaleza, de rua em rua, depois de abrigo em abrigo, até chegar à
Associação Pequeno Nazareno.
— Qual seu nome?
— Antônio Carlos.
— Filho de quem?
— Geane é minha mãe.
— E tu veio de onde?
O menino não sabia, mas guardou um nome: Juazeiro.
E uma imagem: segurando a mão da avó subindo o horto para conhecer a estátua de
Padre Cícero, em “Juazeiro, Juazeiro”, ela dizia. E várias outras lembranças:
uma irmã, ainda de colo, outra que já andava. Um irmão chamado Diego. Um tio,
Nino, que fazia carrinhos de barro e lhe dava de presente - artesão, pegava
palhas de coqueiro, fazia cavalos e vendia na rua; um padrasto que batia na
mãe, e uma mãe que é a maior das lembranças: Geane, que deveria ser ‘da Silva’,
então ele deveria ser Antônio Carlos da Silva. Geane trabalhava fazendo a
limpeza de um motel ou hotel. Se não tinha com quem deixar, levava o filho para
o trabalho.
A sorte do menino perdido, pensa hoje, é que não
perdeu a memória. “Será que minha mãe me procura?”. Chegou a ter raiva por não
saber se era procurado. Quem vê crianças e adolescentes considerados
“complicados” em lares de adoção, talvez não imagina a complicação que sofrem
tão precocemente na vida até ser um pedinte, como ele foi, no Centro Cultural
Dragão do Mar, ou hóspede de pernoite na Praça do Ferreira, por onde já passou.
Ciclos de exclusões sociais que se reproduzem por gerações, em que quanto mais
idade e negra for a criança, menores as chances de adoção. Carlos conseguiu ser
um ponto fora da curva.
Recompondo as memórias
Trabalhando como motorista na associação onde um
dia foi acolhido, Carlos viaja levando crianças institucionalizadas para o fim
de semana na casa de parentes.
“Em sonho, já voltei muitas vezes pra casa”, diz. E
nessas voltas, ele vê um lugar com duas colunas de ferro sustentando um teto,
talvez de alumínio. No meio do lugar, uma cabine de compra e venda de
passagens. Atrás dela, um banheiro. Não tira o lugar da cabeça, e acha que
morava ali perto. Ou melhor, de sua casa para lá eram alguns poucos passos após
atravessar um matagal, à margem de um rio ou lagoa. Sabia que tinha água e
pessoas pescavam. Enquanto crescia longe de casa, Carlos fazia das horas de
dormir o lugar de recuperação dessas memórias. E dormia como quem voltava.
Antônio Carlos fugiu de casa e se escondeu
em um ônibus de um terminal rodoviário próximo de onde morava. O local
permaneceu em sua memória e sonhos - Foto: Reprodução
O “eu quero minha mãe”, de uma criança, pode ser
dito no choro em vários contextos, no de Carlos foi o desespero (ou
desesperança, não lembra) de fugir mais uma vez, agora ao encontro dela: como
aos cinco anos, aos dez ele entrou novamente em um ônibus e foi parar em
Juazeiro do Norte. Saiu perambulando por lá, tentando reconhecer o caminho de
casa e dos sonhos. Mas nada.
Carlos cresceu. Hoje tem 32 anos - não
precisamente. Casou. Tem uma filha. E mesmo ele também tendo a quem chamar de
pai (foi adotado por Antonio Bernardo Rosemeyer, fundador da Associação Pequeno
Nazareno), nunca se sentiu completo sem ao menos saber de sua família
biológica.
“Será que minha mãe me procurou, sente falta de
mim? Ainda é viva? Como estão meus irmãos?”. Por muito tempo, Carlos só falava
para si próprio essas questões, mas seu pai adotivo percebia o anseio e o
ajudava a registrar os sonhos nos quais voltava para casa. “Ele era muito
calado. Mas chegou um momento em que conversamos sobre isso e ele mesmo decidiu
que queria procurar a família biológica, resolver isso na cabeça dele”, explica
Bernardo Rosemeyer, pai adotivo, um ex-frei alemão radicado no Ceará e que faz
de sua missão de vida acolher crianças e adolescentes em extrema
vulnerabilidade social na Associação Pequeno Nazareno, em Maranguape, na Região
Metropolitana de Fortaleza. Quando não voltam ao poder familiar, as crianças e
adolescentes podem ser adotados ou ficar lá até atingirem a maioridade.
A jornada dos outros
Pai e filho sentaram em frente à TV e assistiram ao
filme “Lion - uma jornada para casa”. Baseado em fatos reais, conta a história
do indiano Saroo que, aos cinco anos, se perdeu do irmão em uma estação de trem
de Calcutá e enfrentou várias adversidades para sobreviver sozinho, até ser
adotado por uma família australiana e decidir reencontrar a família biológica.
Bernardo e Carlos choraram com as semelhanças e fizeram do filme gatilho para refazer
a própria jornada: redigiram uma carta que começa com “Há 27 anos não vejo a
minha mãe” e termina com “a esperança me impulsiona de continuar nessa busca,
independente do resultado”. E resgataram uma foto sua aos 14 anos,
aproximadamente, o mais próximo que tinha das feições da criança perdida.
Legenda: Natália, Fernanda, Diego e Clécio, irmãos de Antônio Carlos - Foto: Reprodução
E como se as semelhanças não precisassem parar por
aí, um amigo, homônimo e quase irmão também tomou para si a missão dessa busca.
Dessa forma que Antônio Carlos, o amigo, entra na história. Viajou para o
Cariri, com destino a Juazeiro, com dois mil panfletos, e saiu distribuindo por
onde passava. Um dos lugares foi o hotel municipal de Araripe. Um enfermeiro
que viajava, passou por lá. Pegou um panfleto e colocou no bolso. Chegando em
casa, leu com atenção e se assustou. Na tarde de terça-feira, 24 de novembro,
ligou para o número que estava no papel e, entre um diálogo e outro, as
semelhanças só aumentavam.
— Cara, tu é meu irmão. Eu não tô acreditando!
O incrédulo era Clécio, que nasceu depois do
desaparecimento de Carlos. A mãe de ambos, Geane, faleceu em 2017, vítima de
câncer. Nunca se esqueceu do filho desaparecido, nem deixou de procurar. E se
angustiava sempre que via os outros saindo de casa. Não queria passar de novo.
“Ela sempre falou desse filho, sempre dizia que alguém tinha carregado. Poucos
dias antes de morrer, ela falou que viveu com um cara que batia muito nela e
acabava batendo no Carlos também. Numa briga, ele fugiu de casa. E daí ela acha
que depois alguém o carregou”, lembra Clécio.
Ninguém mora mais em Antonina do Norte, cidade do
Cariri onde Carlos viveu e de onde fugiu. Os outros irmãos, Diego (Mora em
Goiânia), Fernanda e Natália (moram em Petrolina-PE) estão vivos e vibraram de
alegria com a novidade. A avó Francisca mora em Lagoa Grande (PE). Dona
mocinha, como ela é conhecida, ainda não sabe da novidade - os netos vão viajar
no próximo fim de semana para dizer pessoalmente.
Até lá, Carlos conversa com Clécio por chamadas de
vídeo. Em meio à alegria, ficou triste ao saber que a mãe se foi. Mas comemorou
os irmãos que logo mais reencontrará. A família aumentou. “Num ano de tantas
tragédias, um milagre”, pensou.