Compra de 3,5 mil garrafas de cerveja por Batalhão
de Infantaria no Espírito Santo seria suficiente para bancar a alimentação de
um soldado brasileiro por mais de 10 anos
Por Daniel Giovanaz | Brasil de Fato
Reprodução / Forças Armadas
Brasil de Fato – O valor estabelecido pela empresa
Licita Web Comércio Eireli, vencedora do pregão eletrônico nº 006/2020 do 38º
Batalhão de Infantaria para a compra de 3,5 mil garrafas de cerveja das marcas
Heineken e Stella Artois, seria suficiente para bancar a alimentação de um
soldado brasileiro por mais de 10 anos. Essa comparação com a compra de cerveja
mostra o abismo entre as condições de vida de militares de alta e baixa patente
no Brasil.
A compra está descrita em uma representação
protocolada por parlamentares do PSB na Procuradoria Geral da República (PGR)
no início do mês. Além das cervejas especiais, o documento mostra que 714,7 mil
quilos de picanha foram solicitados por militares do Exército e da Marinha em
2020, com sobrepreço de até 60%.
“Em um ano de pandemia, com crise sanitária,
econômica e social devastando nosso país, é inacreditável que os cofres
públicos tenham custeado gastos com cerveja”, dizem os parlamentares. “A
quantidade de itens contratados para o ano de 2020 sugere que as Forças Armadas
realizaram grande número de festividades mesmo durante a vigência de
recomendações sanitárias de distanciamento social.”
O 38º Batalhão de Infantaria está localizado na
Praia de Piratininga, em Vila Velha (ES).
A etapa comum de alimentação do Ministério da
Defesa tem valor o fixo de R$ 9,00 por dia, por militar. Essa é, segundo a
portaria normativa nº 19, de junho de 2017, “a importância, em dinheiro,
destinada ao custeio da alimentação diária do militar em todo o território
nacional.” O valor não teve reajuste desde então.
“Com esses recursos [R$ 9,00 por militar] são
adquiridos os gêneros alimentícios necessários para as refeições diárias (café
da manhã, almoço e jantar)”, afirmou o Ministério da Defesa, em nota divulgada
no final de janeiro. “O efetivo de militares da ativa é de 370 mil homens e
mulheres, que diariamente realizam suas refeições, em 1.600 organizações
militares espalhadas por todo o País.”
A soma do preço das cervejas Heineken e Stella no
pregão, R$ 33.925, seria suficiente para custear, portanto, as três refeições
de um militar por 3.769 dias.
“Eles não recebem vale alimentação porque têm os
ranchos, os restaurantes para os próprios militares”, explica Lucas Pereira
Rezende, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com estágio
pós-doutoral em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP).
“Agora, todos aqueles produtos de luxo, eu duvido
que sejam consumidos pelos praças [aqueles que ocupam categorias inferiores na
hierarquia militar]”, completa. “A nata das Forças Armadas sempre foi bastante
elitista e segregacionista.”
Abismo
“Em praticamente todas as unidades militares existe
distinção de comida para os oficiais de alta patente, os generais”, ressalta
Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da
Universidade de Brasília (IREL/UnB).
Ele trabalhou por quatro anos no Ministério da
Defesa, e lembra que o cotidiano dos generais era repleto de regalias.
“Existiam três restaurantes diferentes. O das
baixas patentes ficava no subsolo, em um ambiente bastante ruim. Existia um
refeitório no segundo andar, para oficiais superiores, até o nível de coronel.
E os generais almoçavam no 6º andar uma comida completamente diferenciada, com
pratos internacionais, e por vezes havia bebida alcoólica”, relata o professor
da UnB.
Além da comida do dia a dia, o oficialato costuma
participar de eventos e recepções. Nessas ocasiões especiais, o luxo é ainda
maior.
“Quando há, por exemplo, trocas de comando no
Ministério da Defesa, acontecem esses eventos, com champanhe, vinhos,
coquetéis”, acrescenta Cortinhas. “São eventos comuns, e às vezes também
participam oficiais estrangeiros, como convidados.”
A discrepância entre as condições de vida dos
militares brasileiros, conforme o grau de hierarquia, é histórica. Nos anos
1920, o país viveu uma série de rebeliões de jovens oficiais de baixa e média
patente do Exército, que criticavam os baixos salários e o jogo político
imposto pelas oligarquias da época.
O chamado movimento tenentista contribuiu para a
desestabilização da ordem política existente na Primeira República e preparou o
caminho para a chamada Revolução de 1930.
O problema da iniquidade nunca foi resolvido, e a
proibição de greves nas Forças Armadas dificulta os avanços.
Pesquisador diz que a discrepância entre as
patentes é maior no Brasil do que em outros países / Reprodução
Um dos casos em que essa insatisfação veio à tona
foi em 1980, quando o então capitão do Exército e hoje presidente da República,
Jair Bolsonaro, planejou explodir bombas em quartéis por melhores salários – o
plano foi revelado pela revista Veja. Bolsonaro foi punido com 15 dias de
prisão disciplinar e acabou absolvido em 1988, mas o episódio foi decisivo para
sua entrada na política.
Como presidente, em dezembro de 2019, Bolsonaro
sancionou uma reforma da Previdência que só aumentou o abismo entre os
militares.
Ampliação do fosso
Na reforma, os militares conseguiram manter
privilégios e até ampliar seus ganhos, no caso dos altos oficiais.
“Houve uma piora, no sentido de equidade dos
diversos níveis na carreira [militar], porque os altos oficiais passaram a ter
um aumento muito maior do que aqueles de baixa patente”, enfatiza o professor
Lucas Rezende. “Então, se ampliou um fosso que é histórico nas Forças Armadas
brasileiras, desde a sua concepção.”
A reforma da Previdência garantiu aos militares a
manutenção do direito à aposentadoria integral, sem limite de idade, regras que
não valem para nenhuma ocupação civil. A ajuda de custo, paga ao militar assim
que ele passa para a inatividade remunerada, para a transferência da família e
dos bens, chegou a oito salários, pagos à vista – o dobro da proposta inicial do
governo.
“Por meio de uma manobra política muito perspicaz,
mas bem pouco democrática, os militares provavelmente atrelaram o apoio ao
governo Bolsonaro a ganhos pessoais. Eles também conseguiram incluir uma
demanda antiga, que era a reforma do plano de carreira, com aumentos
proporcionais”, completa o pesquisador.
Rezende chama atenção para uma foto que ilustra
esta reportagem, que mostra uma reunião de altos oficiais do Exército
Brasileiro em 2020: “São todos homens, brancos, muito bem nutridos, quando a
sociedade tem mais de 50% de pretos e pardos”, analisa. Para o especialista, o
acesso a cargos de comando ainda é restrito, em grande medida, a homens
provenientes da elite.
“É claro que em todos os países os altos oficiais
ganham muito bem, mas as proporções são menos discrepantes do que no Brasil”,
finaliza.
Juliano Cortinhas lembra que a possibilidade de
ascender aos postos mais altos depende de como o militar inicia sua carreira.
“Quem chega a esses postos é quem sai da Academia Militar das Agulhas Negras,
no caso do Exército, da Academia Naval, no caso da Marinha, ou da Academia da
Força Aérea, no caso da Aeronáutica”, explica. “Quem sai da escola de
sargentos, por exemplo, não pode migrar durante a carreira. São distâncias que
não há como encurtar.”
Em valores atuais, o salário-base de um soldado
recruta é R$ 1.078,00. O dos cabos é R$ 2.627,00, enquanto o general de
Exército recebe a partir de R$ 13.471,00
O professor da UnB diz que é comum ouvir generais
reclamando que seu salário-base é baixo em comparação com o Legislativo e o
Judiciário. Por outro lado, os benefícios e gratificações são mais amplos que
qualquer outra carreira.
“Escola para os filhos, assistência médica, com
hospitais de altíssima qualidade e um cuidado todo especial, horas garantidas
para exercício físico”, lista. “Quando chegam ao oficialato, eles têm moradia
gratuita em vilas militares espalhadas pelo país. Os generais têm motorista
próprio, um ajudante de ordens, secretária e um taifeiro, que é um assessor
pessoal e também cumpre serviços domésticos”, acrescenta.
Cortinhas ressalta o alto custo para o Estado
brasileiro sempre que um general é transferido de um posto a outro – “pode
chegar à casa de seis dígitos”. As despesas incluem, por exemplo, a reforma do
apartamento, o pagamento de soldos extra, e a transferência de toda sua equipe.
Quase 80% do orçamento do Brasil em Defesa é
comprometido com pessoal. O padrão estabelecido pela Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), por exemplo, é de 40%.
Na semana passada, as Forças Armadas foram
beneficiadas novamente, desta vez com uma mudança de última hora na PEC
emergencial para blindar reajustes de militares de suspensão em caso de estouro
do teto.
Outro lado
A reportagem entrou em contato com o Ministério da
Defesa e para expor os questionamentos e solicitar informações sobre os eventos
em que os produtos mencionados foram servidos, e quem estava presente.
“A maior parte destes produtos não foi sequer
empenhado”, respondeu a pasta, com links para uma nota publicada recentemente
sobre o pedido de investigação dos parlamentares do PSB. As demais questões não
foram esclarecidas.
“Os processos de compra são executados de forma
transparente, tanto que puderam ser consultados, e auditados pelos órgãos de
controle interno e externo, passando por constantes aprimoramentos”, diz a
nota.
O Brasil de Fato apurou que um dos itens do pregão
eletrônico nº 20/2020 presente na representação entregue à PGR – a compra de
3,5 mil garrafas de cerveja da marca Eisenbahn – não foi empenhado. Por isso, o
valor dessa compra específica não foi incluído no cálculo apresentado ao início
da reportagem.