Imagem
mostra a sobreposição de camada branca ao grafismo rupestre em
Diamantina.DIVULGAÇÃO MPMG
A arte
pré-histórica preservada durante séculos em uma parede na cidade de Diamantina,
em Minas Gerais, já não existe mais. Foi apagada —ou melhor, pintada de branco—
para compor o cenário da minissérie bíblica Rei Davi, da Record. Quase dez anos
depois da gravação de uma das minisséries que se tornaram um filão de sucesso
na teledramaturgia e o segredo da emissora para alavancar a audiência, a
emissora foi condenada em segunda instância a pagar dois milhões de reais por
ter coberto com tinta a parede com arte rupestre.
O
cenário natural da Serra do Pasmar, no Alto Jequitinhonha, à primeira vista,
parecia ideal para as gravações. A rede de televisão investiu cerca de 30
milhões de reais na minissérie, inclusive com gravações nas áreas desérticas de
Cache Creek e Kamloops, no Canadá. No Brasil, no entanto, a equipe optou por
modificar a paisagem. Um relatório de análises químicas no sítio arqueológico
mostrou a presença de tinta branca vinílica na área de patrimônio cultural utilizada
para gravação.
Na sua
defesa apresentada em Juízo, a Record nega que seja possível relacionar a tinta
que existe no local à sua presença, uma vez que a prova pericial foi realizada
dezenove meses após o encerramento das gravações de Rei Davi. Além disso, a
empresa de comunicação afirmou que a gravação da minissérie gerou benefícios ao
município de Diamantina, tais como o acréscimo no turismo e projeção nacional e
que, por isso, não deveria pagar indenização por danos sociais. Destacou ainda
que não havia registro de que o local utilizado para as gravações era sítio
arqueológico ou área de preservação. Procurada, a Record não respondeu às
perguntas enviadas pela reportagem.
O
centro histórico de Diamantina, uma cidade colonial encravada em meio a montanhas,
é reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade por manter preservada a
memória dos garimpeiros de diamantes do século XVIII que exploraram a região.
Mas pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) apontam
que Diamantina e os municípios de entorno têm uma história muito mais antiga a
ser explorada.
A
Serra do Pasmar foi considerada de alto potencial arqueológico segundo
trabalhos do professor Andrei Isnardis, da UFMG, realizados a partir de 2009.
Escavações encontraram pinturas rupestres e vestígios líticos (local de
retirada de ferramentas de pedras) dos grupos pré-históricos que habitaram a
região há até 11.000 anos. Indícios mostram que a área pintada pela Record tem
registros arqueológicos de até 4.000 anos, antes do início da invasão colonial.
“Em toda região, temos cerca de 220 sítios arqueológicos registrados”, afirma o
pesquisador.
ANDREI
ISNARDIS
Isnardis
explica que comparada com outras áreas de Minas Gerais, a região de Diamantina
é bastante preservada. “A população local intervém menos. Muitos sempre viveram
como coletores e utilizam os abrigos rochosos [onde estão localizadas as
pinturas rupestres], mas não são frequentes rabiscos”, afirma. Quando muito,
são encontradas fuligens de fogueiras realizadas nas proximidades das pinturas.
“O caso da Record é diferente, fruto de um profundo desconhecimento do valor
das pinturas rupestres e do patrimônio arqueológico”, afirma.
Esse
desconhecimento se reflete, inclusive, no impasse entre os desembargadores de
segunda instância quanto ao preço a ser pago por quem destrói um patrimônio
arqueológico. Na decisão em primeira instância, o juiz Tiago Ferreira Barbosa
condenou a Record à recuperação dos danos ambientais, ao custeio de prova
pericial realizada, ao pagamento de indenização a título de compensação
ambiental no valor de um milhão de reais e à indenização por danos morais
coletivos também no valor de um milhão de reais, pelos danos ao patrimônio
cultural dos municípios de Gouveia e Diamantina. Também condenou a proprietária
da área, Maria Geralda de Almeida, por permitir o acesso ao local sem assegurar
a reparação da área degradada.
Como a
Record recorreu, ficou para os desembargadores debaterem o mérito da questão. E
o valor a ser pago como reparação de um crime que raramente é objeto de queixa
foi tema de controvérsia. Para uma desembargadora, por exemplo, 400.000 reais
já seriam suficientes para sanar o malfeito. Mas foi o voto do relator, o
desembargador Paulo Balbino, que prevaleceu, e com ele grande parte da sentença
determinada na primeira instância, inclusive os dois milhões de reais. A
empresa de comunicação ainda pode recorrer.
Se é
possível colocar um preço no que foi perdido? “É um exercício que não sou capaz
de fazer… porque não tem preço. Estamos falando de outro tipo de valor. Um
valor histórico, cultural, antropológico, humano, de pessoas que tinham um
outro modo de vida. A pintura rupestre é o vestígio mais visível de outros
povos. É inestimável”, lamenta Isnardis.
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