Em entrevista exclusiva a Revista Veja, o ex-ministro da Justiça diz que
o governo nunca priorizou o combate à corrupção
Por Policarpo Junior, Laryssa Borges/Veja
ATÉ O FIM - Sergio Moro: “Não recuo em nada do que afirmei” Cristiano
Mariz/VEJA
Quando Sergio Moro decretou as primeiras prisões da Operação Lava-Jato,
em 2014, ninguém imaginava que começaria ali uma revolução de consequências
históricas para a política, a economia e o combate à corrupção no Brasil. Em
quatro anos, as investigações revelaram a existência de uma monumental
estrutura que tinha como membros ativos as maiores empreiteiras do país, altos
dirigentes de empresas estatais e políticos de todos os quilates — de deputados
a presidentes da República. Todos se nutrindo da mesma fonte de um esquema que,
durante anos, desviou mais de 40 bilhões de reais dos cofres públicos, dinheiro
convertido em financiamento de campanhas eleitorais e propina. O caso fulminou
biografias, quebrou empresas, arrasou partidos políticos e desmascarou muita
gente que se dizia honesta. A histórica impunidade dos poderosos levou uma
surpreendente rasteira — e abriu caminho para que um outsider chegasse à
Presidência da República. Com a eleição de Jair Bolsonaro e a nomeação de
Sergio Moro para o Ministério da Justiça, muitos apostaram que a corrupção
sistêmica sofreria o golpe de misericórdia no país — uma tremenda ilusão,
segundo o próprio Moro.
INTERFERÊNCIA POLÍTICA - Segundo a reportagem da Revista Veja “O combate
à corrupção não é prioridade do governo”, foi o que revelou o agora ex-ministro
da Justiça, que foi descobrindo aos poucos que embarcara numa fria. Ele estava
em casa na madrugada da sexta (24), quando soube que o diretor-geral da Polícia
Federal fora demitido pelo presidente. Mas o episódio foi a gota d’água de uma
relação tumultuada e desgastada. Havia tempo o presidente não escondia a
intenção de colocar no cargo alguém de sua estrita confiança. Bolsonaro
frequentemente reclamava da falta de informações, em especial sobre inquéritos
que tinham como investigados amigos, correligionários e parentes dele. Moro
classificou a decisão do presidente de pôr um parceiro no comando da PF de uma
manobra para finalmente ter acesso a dados sigilosos, deu a isso o nome de
interferência política e, na sequência, pediu demissão. Bolsonaro, por sua vez,
disse que a nomeação do diretor da PF é de sua competência e que as acusações
de Moro não eram verdadeiras. O Supremo Tribunal Federal mandou abrir um
inquérito para apurar suspeitas de crime.
RECADO – Moro, em relação a Bolsonaro: “Ele sabe quem
está falando a verdade” Alex Farias/Photo Press/.
Em entrevista exclusiva a VEJA, Moro revelou que não vai admitir ser
chamado de mentiroso e que apresentará à Justiça, assim que for instado a
fazê-lo, as provas que mostram que o presidente tentou, sim, interferir
indevidamente na Polícia Federal. Um pouco abatido, o ex-ministro também se
disse desconfortável no papel que o destino lhe reservou: “Nunca foi minha
intenção ser algoz do presidente”. Desde que deixou o ministério, ele passou a
ser hostilizado brutalmente pelas redes bolsonaristas. “Traidor” foi o adjetivo
mais brando que recebeu. Mas o fato é que Bolsonaro nunca confiou em Moro.
Sempre viu nele um potencial adversário, alguém que no futuro poderia ameaçar
seu projeto de poder. Na entrevista, o ex-ministro, no entanto, garante que a
política não está em seus planos — ao menos por enquanto. Na quarta-feira 29, durante
a conversa com VEJA, Moro recebeu um alerta de mensagem no telefone. Ele
colocou os óculos, leu e franziu a testa. “O que foi ministro?” “O presidente
da República anunciou que vai divulgar um ‘vídeo-bomba’ contra mim.” “E o que o
senhor acha que é?”, perguntamos. Moro respirou fundo, ameaçou falar alguma
coisa, mas se conteve. A guerra está só começando. Acompanhe nas próximas
páginas os principais trechos desta conversa.
“O COMBATE À CORRUPÇÃO NÃO É
PRIORIDADE DO GOVERNO”
O ex-ministro Sergio Moro recebeu VEJA em seu apartamento em Brasília.
Na entrevista, que durou duas horas, ele lembrou que aceitou o cargo de titular
da Justiça diante do compromisso assumido por Bolsonaro com o combate à
corrupção. Aos poucos, porém, foi percebendo que esse discurso não encontrava
sustentação na prática do governo — e ficou bastante incomodado quando viu o
presidente se aproximar de políticos suspeitos:
“Sinais de que o combate à corrupção não é prioridade do governo foram
surgindo no decorrer da gestão. Começou com a transferência do Coaf para o
Ministério da Economia. O governo não se movimentou para impedir a mudança.
Depois, veio o projeto anticrime. O Ministério da Justiça trabalhou muito para
que essa lei fosse aprovada, mas ela sofreu algumas modificações no Congresso
que impactavam a capacidade das instituições de enfrentar a corrupção. Recordo
que praticamente implorei ao presidente que vetasse a figura do juiz de
garantias, mas não fui atendido. É bom ressaltar que o Executivo nunca negociou
cargos em troca de apoio, porém mais recentemente observei uma aproximação do
governo com alguns políticos com histórico não tão positivo. E, por último,
teve esse episódio da demissão do diretor da Polícia Federal sem o meu
conhecimento. Foi a gota d’água”.
O ex-juiz da Lava-Jato era, até dias atrás, tratado como “herói” pelos
militantes bolsonaristas, mas,… Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
A LENDA - O senhor acusou o presidente Bolsonaro de
interferir politicamente na Polícia Federal. Tem provas disso?
O presidente tem muito poder, tem prerrogativas importantes que têm de
ser respeitadas, mas elas não podem ser exercidas, na minha avaliação,
arbitrariamente. Não teria nenhum problema em substituir o diretor da PF
Maurício Valeixo, desde que houvesse uma causa, uma insuficiência de
desempenho, um erro grave por ele cometido ou por algum de seus subordinados.
Isso faz parte da administração pública, mas, como não me foi apresentada
nenhuma causa justificada, entendi que não poderia aceitar essa substituição e
saí do governo. É uma questão de respeito à regra, respeito à lei, respeito à
autonomia da instituição.
E quais eram as motivações políticas?
Reitero tudo o que disse no meu pronunciamento. Esclarecimentos
adicionais farei apenas quando for instado pela Justiça. As provas serão
apresentadas no momento oportuno, quando a Justiça solicitar.
“NÃO POSSO ADMITIR QUE O PRESIDENTE
ME CHAME DE MENTIROSO”
O presidente Bolsonaro rebateu as acusações do ex-ministro. Ele negou
que houvesse tentativa de interferência política na Polícia Federal e acusou
Sergio Moro de tentar negociar a demissão do diretor da PF em troca de sua
nomeação para uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Moro conta por que divulgou
uma mensagem trocada entre ele e a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) e
outra entre ele e Bolsonaro:
“Eu apresentei aquelas mensagens. Não gostei de apresentá-las, é
verdade, mas as apresentei única e exclusivamente porque no pronunciamento do
presidente ele afirmou falsamente que eu estava mentindo. Embora eu tenha um
grande respeito pelo presidente, não posso admitir que ele me chame de
mentiroso publicamente. Ele sabe quem está falando a verdade. Não só ele.
Existem ministros dentro do governo que conhecem toda essa situação e sabem
quem está falando a verdade. Por esse motivo, apresentei aquela mensagem, que
era um indicativo de que eu dizia a verdade, e também apresentei a outra
mensagem, que lamento muito, da deputada Carla Zambelli. O presidente havia
dito uma inverdade de que meu objetivo era trocar a substituição do diretor da
PF por uma vaga no Supremo. Eu jamais faria isso. Infelizmente, tive de revelar
aquela mensagem para provar que estava dizendo a verdade, que não era eu que
estava mentindo”.
IMAGEM QUEIMADA… – depois das acusações que fez contra o
presidente, foi alvo de ataques e chamado de “traidor” Pedro Ladeira/.
Na mensagem, Bolsonaro cita uma investigação sobre deputados aliados e afirma
que aquilo era motivo para trocar o diretor da PF. O que exatamente queria o
presidente? Desculpe, mas essa é uma questão que também vai ter de ser
examinada dentro do inquérito que foi aberto no Supremo Tribunal Federal para
investigar esse caso. Reitero a minha posição. Uma vez dito, é aquilo que foi
dito. Não volto atrás. Seria incoerente com o meu histórico ceder a qualquer
intimidação, seja virtual, seja verbal, seja por atitudes de pessoas ou de
outras autoridades.
O senhor sofreu algum tipo de ação
intimidatória após as revelações que fez?
Atacaram minha esposa e estão confeccionando e divulgando dossiês contra
ela com informações absolutamente falsas. Ela nunca fez nada de errado. Nem eu
nem ela fizemos nada de errado. Esses mesmos métodos de intimidação foram
usados lá trás, durante a Lava-Jato, quando o investigado e processado era o
ex-presidente Lula.
“NUNCA FOI MINHA INTENÇÃO SER ALGOZ
DO PRESIDENTE”
Depois das denúncias de Moro, o Supremo Tribunal Federal determinou que
fosse aberto um inquérito para apurar se o presidente tentou de fato aparelhar
a PF para fins políticos. Em seu parecer, o procurador-geral da República,
Augusto Aras, pediu que também fossem investigados os crimes de denunciação
caluniosa e contra a honra — ilícitos que, em tese, podem ter sido praticados
por Moro:
“Entendi que a requisição de abertura desse inquérito que me aponta como
possível responsável por calúnia e denunciação caluniosa foi intimidatória.
Dito isso, quero afirmar que estou à disposição das autoridades. Os ataques
mais virulentos vieram principalmente por redes virtuais. Não tenho medo de
ofensa na internet, não. Me desagrada e tal, mas se alguém acha que vai me
intimidar contando inverdades a meu respeito no WhatsApp ou na internet está
muito enganado sobre minha natureza”.
Aras: pedido de investigação por denunciação caluniosa e crime contra a
honra do presidente Andressa Anholete/Getty Images
RISCO DE PROCESSO – A opinião pública
O senhor recebeu mais críticas ou
apoios por se demitir do cargo e acusar o presidente?
Compreendeu o que eu disse e os motivos da minha fala. É importante
deixar muito claro: nunca foi minha intenção ser algoz do presidente ou
prejudicar o governo. Na verdade, lamentei extremamente o fato de ter de adotar
essa posição. O que eu fiz e entendi que era minha obrigação foi sair do
governo e explicar por que estava saindo. Essa é a verdade.
Qual é hoje a sua opinião sobre o
presidente Bolsonaro?
Pessoalmente, gosto dele. No governo, acho que há vários ministros
competentes e técnicos. O fato de eu ter saído do governo não implica qualquer
demérito em relação a eles. Fico até triste porque considero vários deles
pessoas competentes e qualificadas, em especial o ministro da Economia. Espero
que o governo seja bem-sucedido. É o que o país espera, no fundo. Quem sabe a
minha saída possa fomentar um compromisso maior do governo com o combate à corrupção.
“NÃO QUERO PENSAR EM POLÍTICA NESTE MOMENTO”
Em todas as grandes manifestações dos apoiadores do presidente, a figura
do ex-ministro da Justiça sempre ocupou lugar de destaque. Após sua demissão,
ele passou a ser tratado nas redes sociais como traidor e oportunista que
estaria tirando proveito político em um momento de fragilidade do governo:
“Lamento ter de externar as razões da minha saída do governo durante
esta pandemia. O foco tem de ser realmente o combate à pandemia. Estou dando
entrevista aqui porque tenho sido sucessivamente atacado pelas redes sociais e
pelo próprio presidente. Hoje mesmo, quarta, ele acabou de dar declarações,
ontem deu declarações. Venho sendo atacado também por parte das pessoas que o
apoiam politicamente. Tudo o que estou fazendo é responder a essas agressões,
às inverdades, às tentativas de atingir minha reputação”.
Adélio, que tentou matar o presidente: caso ainda não encerrado./Divulgação
MANDANTE - O que o senhor pretende fazer a partir de agora?
Estou num período de quarentena. Tive 22 anos de magistratura. Deixei
minha carreira com base em uma promessa não cumprida de que eu teria apoio
nessas políticas de combate à corrupção. Isso foi um compromisso descumprido.
Não posso voltar para a magistratura. Eu me encontro, no momento, desempregado,
sem aposentadoria. Tudo bem, tem gente em situação muito mais difícil que a
minha. Não quero aqui ficar reclamando de nada. Pedi a quarentena para ter um
sustento durante algum tempo e me reposicionar, provavelmente no setor privado.
Não pensa em entrar definitivamente
na política?
Minha posição sempre foi de sentido técnico. Vou continuar buscando
realizar um trabalho técnico, agora no setor privado. Não tenho nenhuma
pretensão eleitoral. Não me filiei a partido algum. Nunca foi meu plano. Estou
num nível de trabalho intenso desde 2014. Quero folga. E não quero pensar em
política neste momento.
“PODE EXISTIR UM MANDANTE DO CRIME”
Um dos motivos do desgaste de Sergio Moro e da direção da PF foi a
investigação do atentado que Bolsonaro sofreu durante a campanha. O presidente
não acredita que o garçom Adélio Bispo de Oliveira agiu sozinho. Crê numa
conspiração política patrocinada por adversários. A polícia nunca encontrou
nenhuma prova concreta disso. Questionado sobre o assunto, o ex-ministro diz
que a hipótese não é absurda:
“Existe uma forte suspeita de que o Adélio tenha agido a mando de outra
pessoa. A Polícia Federal fez a investigação. Como o presidente é vítima neste
caso, nós fizemos uma apresentação no primeiro semestre de 2019 no Planalto. Os
delegados apresentaram todo o resultado da investigação até aquele momento.
Pende para o final da investigação um pedido de exame do aparelho celular de um
advogado do Adélio. A polícia buscou esse acesso, e isso foi obstado pelas
Cortes de Justiça, e ainda não há uma decisão definitiva. Depois do exame desse
celular, o inquérito poderá ser concluído. Esse é o conteúdo de inquérito que
foi mostrado ao presidente, não é ilegal, já que ele é a vítima e tem, como
vítima, a meu ver, o direito de ter essas informações. Não é nenhuma questão só
do crime em si, mas um caso de segurança nacional. A suspeita de que pode
existir um mandante intelectual do crime não pode ser descartada. Enquanto não
se tem a conclusão da investigação, não se pode ter um juízo definitivo”.
- A facada: o ex-ministro diz que ainda existem “suspeitas” de
que o atentado possa ter um mandante Rayssa Leite/AFP
CONSPIRAÇÃO - O senhor tem medo de
sofrer algum atentado?
Certamente. Sigo tendo a proteção da Polícia Federal. Não gosto de falar
muito nesse assunto. Isso é algo que assusta pessoas próximas a mim.
Foi por isso que, antes de aceitar o cargo, o senhor pediu ao presidente
uma pensão caso lhe acontecesse algo?
Achei engraçado algumas pessoas dizerem que seria um crime da minha
parte. O que aconteceu foi o seguinte: como eu larguei a magistratura, perdi a
aposentadoria e a pensão. E, como eu sabia que nós seríamos firmes contra a
criminalidade violenta, contra o crime organizado e contra a corrupção, o que
externei ao presidente foi um desejo de que, se algo me acontecesse durante a
gestão, como eu havia perdido a pensão, minha família não ficasse desamparada.
Certamente teria de ser analisada juridicamente a viabilidade disso, e a
aprovação através de uma lei. A condição para que a pensão fosse paga seria a
minha morte. Só externei que, caso eu fosse morto em combate, fosse garantida
uma pensão integral à minha família, correspondente aos vencimentos de
ministro.
O senhor se arrepende de ter largado a magistratura para entrar no
governo Bolsonaro?
Não. A gente tem esse espelho da Operação Mãos Limpas, na Itália. Foi
feito um trabalho fantástico lá pelos juízes, mas houve um retrocesso político
na Itália naquela época. Eles lamentavam muito. Embora soubesse que minha ida
para o governo seria controversa, o objetivo sempre foi continuar defendendo a
bandeira anticorrupção, evitando retrocessos. Não, não me arrependo. Acho que
foi a decisão acertada naquele momento. Agradeço ao presidente por ter me
acolhido. Assumi um compromisso com ele que era muito claro: combate à
corrupção, ao crime organizado e à criminalidade violenta. Eu me mantive fiel a
esse compromisso.
Matéria será publicada em VEJA de 6 de maio de
2020, edição nº 2685
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