Diário do Nordeste
O
pequi, típico da região do Cariri, garante o sustento de dezenas de
extrativistas. Foto: Antônio Rodrigues
Um
levantamento inédito realizado pelo Ministério Público Federal (MPF) aponta que
pelo menos 14.655 famílias se declaram povos ou comunidades tradicionais no
Estado. O número, no entanto, deve crescer, já que o estudo ainda está em
curso. A pesquisa permitirá o aperfeiçoamento da atuação do próprio MPF, além
de possibilitar uma melhor discussão no âmbito das políticas públicas que podem
impactar positivamente nas comunidades tradicionais.
Esses
povos perpassam a história do Ceará e, ainda hoje, se mantêm firmes diante dos
conflitos para terem seus direitos reconhecidos. Hoje (24), o Diário do
Nordeste aborda, em reportagem especial, como está o atual cenário de dois dos
sete povos analisados pelo MPF: extrativistas e pescadores. Amanhã (25), traz
detalhes sobre ribeirinhos e povos de terreiros.
Extrativistas
De
acordo com o levantamento, 147 famílias extrativistas cearenses estão inseridas
na Plataforma de Territórios Tradicionais, banco de dados que reúne as
informações levantadas. Eles se encontram, em sua maioria, na faixa litorânea
cearense, onde estão localizadas as duas únicas Reservas Extrativistas (Resex)
do Estado reconhecidas pela União: as reservas do Batoque (Aquiraz) e Prainha
do Canto Verde (Beberibe). A criação das áreas de proteção é solicitada pelas
associações de moradores das comunidades.
Comunidades
Invisíveis
No
Cariri, grupos se avolumam na Chapada do Araripe, de onde tiram o pequi, fruto
nativo e símbolo da região. O fruto é a principal fonte de renda para o grupo
tradicional, principalmente em Crato, Nova Olinda, Barbalha e Jardim. De acordo
com o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), foram identificadas
aproximadamente 110 comunidades com atividade extrativista no território
cearense na Área de Proteção Ambiental (APA) da Chapada do Araripe.
No
entanto, nenhuma dessas comunidades fez pedido para serem reconhecidas como
"povos extrativistas". O analista ambiental do órgão federal, Paulo
Maier Souza, explica que apesar do alto número, oficialmente é como se o local
não contasse com nenhuma comunidade. "É o que a gente chama de comunidades
invisíveis". Caso contrário, o local poderia dispor de uma Resex ou
Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RSD).
Trâmite
de Criação
O
processo de criação de uma Resex começa, obrigatoriamente, a partir de um
pedido da própria comunidade, mas ela precisa ter algumas características. Uma
delas é o conhecimento transferido de geração em geração pela oralidade.
"Normalmente, elas têm alguns produtos principais e conhecem alguns
mecanismos de manejo na natureza", explica Paulo. Ao se autorreconhecerem,
os extrativistas se organizam e fazem um abaixo assinado para posteriormente
demandar os órgãos responsáveis, como o ICMBio.
O
reconhecimento oficial dá acesso a uma série de políticas públicas. Por lei,
30% do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) utilizado no
Programa Nacional de Aquisição de Alimentos deve ser utilizado para a compra de
alimentos da agricultura familiar. Os extrativistas entram nessa categoria
junto com silvicultores, aquicultores, pescadores, indígenas, quilombolas e
assentados da reforma agrária. As comunidades da APA, no entanto, estão, por
ora, desamparadas por essa normativa.
Outra
medida que beneficia os extrativistas reconhecidos é o direito ao território.
"Muitas vezes a atividade não é realizada em área de propriedade dessas
famílias. Eles fazem a coleta na APA, Floresta Nacional (Flona) ou em áreas de
terceiros. Em alguns casos, isso gera conflito. Além disso, existe a
possibilidade de pessoas que moram em florestas permanecerem morando",
pontua Paulo. Estas comunidades podem ser incluídas em estudos de impacto
ambiental em obras do Estado.
Regularização
Fundiária
O
geógrafo Israel Bezerra explica que, desde 2008, o Estado vem desenvolvendo um
processo de regularização fundiária, que acaba esbarrando nos conflitos
territoriais de reconhecimento por terras. "A concentração permanece
dentro de um padrão que limita o acesso em determinadas áreas, principalmente,
porque muitas comunidades tradicionais estão em locais estratégicos, como nas
áreas litorâneas, o que gera o conflito", observou Bezerra.
Segundo
o pesquisador, ligado ao Laboratório de Estudos Agrários e Territoriais (Leat),
da Universidade Federal do Ceará (UFC), "é necessária uma efetividade nas
políticas para garantir o título da terra dessas comunidades". O que
garante acesso à terra é a titularidade, que pode se dar de forma individual ou
coletiva. No Ceará, segundo Israel, "é comum que a titularidade seja dada
na forma coletiva".
No
Ceará, os pescadores artesanais aparecem em maior quantidade (5.580). Foto:
Natinho Rodrigues
O que
não é o caso da Vila Barreiro Novo, formada às margens da CE-060, no território
da Flona, no limite entre Barbalha e Jardim. Com aproximadamente 44 casas de
taipa e alvenaria, a comunidade de catadores foi se formando ao longo dos anos,
mas ainda não conquistou a regularização fundiária. De janeiro a março, período
que marca a safra do pequi, mais de 20 famílias se mudam para o meio da
floresta para colher o fruto.
Desafios
Sem o
conhecimento formal - e legal - os extrativistas do Cariri acumulam um peso
ainda maior do verificado em outras comunidades do Estado. Se para os demais as
políticas públicas já são deficitárias, na Chapada do Araripe os desafios vão
além. Hoje, o principal problema é o abastecimento de água para algumas
famílias. O recurso é obtido através de um poço profundo e enviado a uma caixa
d'água, porém, nem todas as casas têm acesso. Na Vila Barreiro Novo uma
cisterna é custeada pelos próprios extrativistas.
Outro
problema enfrentado é o acesso à educação. As comunidades, de um modo geral,
são desassistidas quanto ao transporte escolar. A reportagem tentou contato com
a Prefeitura de Jardim sobre a questão do transporte para as crianças no
período da safra do pequi, mas não obteve resposta até o fechamento desta
edição. Também tentamos falar com o Serviço Autônomo de Água e Esgoto do
Município, que não se manifestou.
Resistência
na água
Maria
Miguel de Melo, de 56 anos, mora no mesmo local de onde tira o sustento da
família. Marisqueira desde criança, sua casa fica a cerca de 700 metros do Rio
Piranji, em Beberibe, no litoral do Estado. "Nasci aqui e desde os 10 anos
a gente já ia procurar o meio de sobrevivência na água", lembra.
A
categoria da qual faz parte compõe o maior número de famílias que se consideram
"povos tradicionais" no Estado, segundo o levantamento do MPF - são
pelo menos 5.580 pescadores artesanais.
Para
Edivan Dantas, presidente da Associação Comunitária dos Produtores de Parajuru,
os pescadores tiveram avanços nos aspectos econômicos e sociais. "Houve
melhoria na qualidade de vida", analisa. No entanto, apesar dos
progressos, os desafios existentes ainda são latentes. Segundo Raimundo da
Rocha Ribeiro, presidente da Federação dos Pescadores do Estado do Ceará, a
baixa produção, falta de investimentos e regularização da documentação dos
pescadores são os principais desafios.
O
representante cobra mais agilidade das autoridades para facilitar o cadastro
dos pescadores. "Em abril, iam fazer o recadastramento e ainda não há um
planejamento. Não tem como cadastrar as colônias, nem os pescadores", diz
Raimundo, ao indicar que o Estado conta com 71 colônias de pescadores
associadas à Federação.
Em
nota, a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA) informou que com a extinção
da Secretaria de Pesca e Aquicultura do Estado (Seapa), alguns projetos ficaram
sob sua responsabilidade, um dele "visa apoiar as colônias de pescadores,
disponibilizando equipamentos para melhorar as condições de trabalho e
assistência aos pescadores, facilitando a comunicação e integração entre elas
os órgãos públicos e privados".
"Poucas
colônias entregaram a documentação completa, motivo pelo qual esse cadastro
está incompleto ou possui documento pendente", completa a nota. O órgão
ressaltou que "através da Célula de Orientação Técnica da Pesca já entrou
em contato com a maioria delas, solicitando a documentação pendente",
encerra.
>>
Análise
Wilson
Rocha, Procurador da República
"O
levantamento poderá servir às próprias comunidades, em seus contextos
específicos de luta por direitos. Um banco de dados público, contendo
informação georreferenciada dos territórios onde as comunidades vivem, poderá
aprimorar o diálogo das lideranças tradicionais com os demais agentes públicos
e privados com os quais elas se relacionam. A primeira limitação ou dificuldade
deve-se à diversidade de grupos compreendidos na categoria povos e comunidades
tradicionais, dispersos em todo o território nacional. Assim, deverá haver por
parte das instituições e das lideranças comunitárias que participam da
Plataforma de Territórios um esforço muito grande de difusão da ferramenta, esclarecendo
as próprias comunidades e instituições que as apoiam da possibilidade de
alimentar a Plataforma com o registro georreferenciado de seus
territórios".
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